Maldito Show, Bendita Música

Maldito show, bendita música


Dei um suspiro profundo que regurgitou assim que a porta do carro se fechou e meu Deus, como foi dolorido.

Maldito show, pensei.

Mas o compromisso falava mais alto e não restava outra alternativa a não ser dar a partida e ir para casa pegar meu velho baixo Fender Jazz Bass desgastado pelo tempo.
Meu baixo...
Companheiro de uma vida. Nunca falhou! Nunca me deixou na mão e principalmente: nunca morrerá.
Mas o show tem que acontecer. Não dá para pular fora.

O palhaço tem que fazer o povo rir, mesmo estando triste. Sentia na pele e na alma essa maldita frase feita. Meu Deus, como está doendo.

O carro foi lentamente deixando o estacionamento do hospital onde minha esposa testemunhava os últimos minutos da vida de sua irmã (minha cunhada), que lutava de forma desleal contra um câncer de pulmão.
Luta de um peso pena contra um peso pesado.
Não havia a mínima chance de minha cunhada ganhar essa luta.

Lembrei-me de quando conheci minha esposa a 31 anos, e de como as duas irmãs eram unidas.
Bonitas, vistosas e chamando atenção por onde passavam.
Percebi naquele instante que nunca separaria aquelas duas, então em vez de lutar contra essa união, simplesmente agreguei-as em minha vida.

Dizem que um homem nunca pode ser amigo de uma mulher. Pura mentira deslavada eu penso. É lógico que se pode, pois sempre fui amigo de minha cunhada. Uma amizade que se confundia com irmandade.

Lembrei das vezes em que as duas iam para as Gig's de rock and roll e como elas ficavam pulando feito loucas lá na platéia.
Rindo juntas.
A vida é tão engraçada que até o filho dessa minha cunhada já tinha feito parte da minha banda de rock and roll.

Como era questão de horas a morte de minha cunhada, eu não queria ir para aquele show. Queria estar lá, no hospital. Presente. Sendo cúmplice de minha esposa. Como sempre fui nesses 31 anos.
Eu precisa só estar lá... Não precisaria falar, consolar, nada disso.

Palavras, nessas horas não dizem nada. Só precisava e queria estar lá.

Essa morte é também o anúncio de que estou velho.

E ser velho é perceber que o cara que usava chinelo de pneu de carro, casaco de couro marrom e calça jeans a 35 anos agora vivencia as testemunhas de minha vida saírem de cena.

O bar estava meio vazio. Ou meio cheio, dependendo do ponto de vista.

Sem ânimo, subo no palco. Afino meu amado baixo. Faço a passagem de som e vou para um canto, numa mesa solitária. Os caras da banda sabendo da minha tristeza de nem se aproximaram.
Sei que é por puro respeito que os caras ficam longe, na deles.

Mas quando o maldito show começa, a música vem, mansa, meiga, doce, como uma amante quente naquela noite fria e me rouba para seu mundo.

No mundo da música não tem dívidas de banco, não tem compromissos, não tem recriminações, não tem saudade dos amigos que já se foram.

Como é bom, como é gostoso, como é aconchegante esse mundo.

Bendito show.

Música: como você é perversa e inebriante!

Meu vício!

Lindo texto Maurício! Incrível como a música tem esse poder de cura, né cara? Acho que com a maioria de nós daqui acontece o mesmo.

Você é um cara sábio meu amigo, espero um dia chegar nesse nível de serenidade e desprendimento.
Obrigado pelo belo texto/depoimento...

É Mauricio,a musica é revigorante.As vezes ta tudo fora de lugar,tenso e errado,mas tem o momento que a musica flui e não sei de onde e nem como, o prazer surge.
Meus respeitos.

Maurício, penso que existem momentos em que a Música é uma oração, um momento de intercâmbio de sensações, uma meditação sonora...

Nas horas difíceis, a Música talvez seja o nosso mais longo minuto de silêncio interno, que ressoa externamente palavras e sentimentos em forma de melodias...

A Música tem o dom da metamorfose, e pode vir em forma de um agradecimento, de uma homenagem, de uma alegria, de uma dor, de uma declaração, etc, ou mesmo de um adeus...

Nos momentos mais sublimes, a Música é o nosso eu etéreo, quando ele se transforma em emoção...

Lindo e emocionante o seu texto...

Não tenho o que dizer Maurício, apenas que isso lembrou-me do passamento da minha mãe, que ontem (06/06) completou 5 anos.

Amiga, companheira, incentivadora, financiadora, cúmplice, jogadora de panos quentes, disciplinadora e .... MÃE!!!

Belo texto e sinto pelo sua dor.

Miriam, minha cunhada morreu na semana do primeiro encontro nacional do Forum ano passado no Rio de Janeiro.
Esse foi o motivo de eu não estar lá...
Esse show foi nessa semana também. 2 dias antes do falecimento.
Só ontem postei esse texto que escrevi na época...

Emocionante, Maurício!

Eu fiquei tão 'baratinado' com a data e os acontecimentos de 5 anos atrás, que nem percebi que o texto estava na revista.

Li de tal modo que em meu entender, aconteceu por estes dias...

Desculpe a gafe!